22/03/2022

Podemos amar e comer animais?


Muitos de nós dizemos que gostamos de animais ou, pelo menos, concordamos que eles têm o direito de viver. Dizemos que nunca seríamos capazes de lhes fazer mal e, no entanto, comemo-los. Comemo-los e não encontramos quaisquer incoerências perante essa acção e as nossas crenças. E assim continuamos a nossa vida, amando e comendo animais simultaneamente.

A maioria das pessoas concorda que é congruente lutar pelos direitos dos animais e comê-los. Dependendo da definição que se tem de gostar e dependendo também de que animais estamos a referir, acaba por ser possível lutar pelos direitos dos animais nesses contornos mas só de alguns e não de todos. Defender cães e gatos, entre outros que não exploramos, é diferente de militar por todos os animais equitativamente. Não podemos defender os animais que comemos porque estamos automaticamente a excluí-los de quaisquer direitos. E, anulando-lhes os direitos, o impacto das nossas acções nas vidas deles é brutal.

“Porque deverei parar de comer frangos se não me importo com eles da mesma maneira que me importo com os cães?”

Quase todos nós adoramos ver vídeos com animais, incluindo com porquinhos, cordeiros, vacas e até mesmo galinhas. No entanto, na hora da refeição, desligamo-nos totalmente desses animais que ainda há bocado nos faziam rir e derreter o coração.

Mas porque acontece isso?

A psicóloga Melanie Joy, que estudou durante anos sobre este paradoxo, definiu-o como carnismo, um sistema de crenças que nos leva a comer certos animais. Consideramos o consumo de alguns animais como necessário, o que nos leva a crer que é inevitável comê-los e, portanto, que sejam mortos. Como essa necessidade parece-nos irreversível, arranjamos um meio de compatibilizar sentimentos tão díspares como gostar de animais enquanto viramos a cara à crueldade cometida contra eles. Consequentemente, os animais explorados para consumo são encarados por nós como abstracções e, por isso, encontram-se fora do conceito que temos de um animal com direitos. Basicamente, tornam-se invisíveis. Tal faz com que consigamos juntar empatia com indiferença sem que isso pareça estranho.


Não desprezo, e muito menos desvalorizo, o amor que as pessoas têm pelos animais. Conheço várias que batalham incansavelmente por eles e que muito sacrificaram para lhes dar algum alento. São pessoas admiráveis e isso é indubitável, até porque não é qualquer um que faz o que elas fazem pelos animais que resgatam e acolhem. No entanto, isso não é suficiente para concordar que os animais que elas comem estejam incluídos nesse círculo de amor e dedicação.
Do ponto de vista ético, comer animais é errado. Afirmá-lo não é dirigir um ataque pessoal a quem os come: é emprestar a voz a esses animais, algo que também é feito por quem defende outros animais.


Apelo ao bem-estarismo

Se há coisa que já reparei há algum tempo, é que o bem-estar animal é somente evocado quando se trata de animais explorados para consumo. Até agora, não vi ninguém que goste de animais a defender o bem-estarismo na indústria de peles. Ninguém diz É cruel o que os animais passam nas indústrias de peles, pelo que devemos oferecer-lhes melhores condições de alimentação e higiene, mais liberdade e mais cuidados veterinários, para assim viverem felizes antes de serem abatidos. Para além de soar um absurdo, quem costuma tomar esta posição é quem defende a utilização de peles. O mesmo sucede com outras pessoas e grupos que são favoráveis à perpetuação de algum tipo de exploração animal.

Há povos, com culturas diferentes da nossa, que comem cães e gatos. Para nós é hediondo (ao ponto de reproduzirmos falas altamente racistas e xenófobas), mas para eles é algo tão natural como é para nós comer porcos e peixes. E, assim como o exemplo das peles, também não aceitaríamos que alguém dissesse Os cães sofrem muito antes de serem mortos. A solução está em reduzir o consumo de carne e estabelecer condições mais dignas para eles, desde a criação até ao abate. Exigimos que a indústria da carne de cão seja abolida enquanto pedimos que a indústria da carne de vaca seja somente reformada. Essa posição só corrobora a teoria sobre o carnismo: quando achamos que algo é indispensável procuramos justificá-lo, mesmo quando não o é. O bem-estarismo é somente defendido porque encontra-se nele um escudo de protecção para os nossos interesses: os interesses dos animais não são prezados, nem pouco mais ou menos.


A realidade é injusta mas é esta: não é possível sermos 100% cruelty-free

Esta é outra proposição bastante utilizada para apaziguar a problemática que envolve esta discussão. Como um estilo de vida isento de sofrimento animal não pode ser totalmente aplicável, então, ninguém tem o direito de apontar a incoerência que é amar e explorar animais. Inevitavelmente várias questões surgem, como a das plantas serem igualmente seres vivos e como isso prova o ponto supracitado.

Esse tema só é lançado quando falamos de animais como porcos e vacas. Ninguém compara as plantas com cães e gatos porque, aí, é inconcebível, mas para legitimar a morte daqueles que comemos, esse argumento já é cabível. Enquanto comparamos um repolho com uma galinha, em circunstâncias práticas nunca priorizaríamos o resgate de um cacto no lugar de um gato em caso de incêndio, por exemplo. Também ficaríamos revoltados se alguém atropelasse um cão e justificasse-o dizendo que não quis desviar-se para não passar por cima da relva porque a relva também sente dor. Nunca aceitaríamos essa desculpa mas, para resguardar o nosso interesse de continuar a comer certos animais, já a usamos.
Nenhum estudo científico conseguiu comprovar irrefutavelmente a senciência vegetal. As plantas reagem a estímulos de natureza química e física, mas tal não tem qualquer ligação com a senciência: até mesmo organismos não-vivos, como proteínas, respondem a estímulos. É no sistema nervoso que são transmitidos sinais entre as diferentes partes do organismo, sendo a dor uma manifestação que provoca estímulos que são enviados pelos nervos ao cérebro. Este, por sua vez, envia esses estímulos ao córtex motor para que haja reacção. As plantas não têm sistema nervoso central, nem cérebro ou algo próximo a um gânglio cerebral.

Ainda assim, partindo do pressuposto que as plantas sentem dor:

Comer animais implica a morte de mais plantas do que uma alimentação totalmente vegetal, já que um quilo de carne exige cerca de 7 a 16 quilos de plantas.
• Se as plantas sentem dor é difícil não concluir que sofrem constantemente, visto estarem fixadas na terra e não terem como escapar a predadores e a outros perigos. Nesta condição, serem sencientes seria uma contradição.

Outra questão, também muito abordada, é de que não temos como preservar a vida de todos os animais: só o facto de existirmos assim o implica. Dois dos exemplos mais usados são os insectos (que matamos vários deles quando caminhamos, viajamos de carro, etc.) e o uso de telemóveis e computadores (devido à exploração de minérios que tem, como consequência, a morte de animais).
No entanto, essas e outras realidades não nos impedem de parar de comer animais, assim como não nos impedem de sermos contra outros tipos de exploração animal. Já viram alguém a desistir de ser contra a tauromaquia só porque tem um iPhone? Então, se deixar de comer animais é totalmente praticável, porquê avaliá-lo como algo disparatado?

Existem outros argumentos, mas vou só colocar mais este e que já foi aqui implícito: de que comer animais é necessário.
Esse pensamento, tão profundamente enraizado, está bem longe de ser verdadeiro: se assim o fosse, o vegetarianismo não seria possível. Todos os nutrientes estão presentes no universo vegetal: só a B12, por ser de origem bacteriana, é muito difícil de ser encontrada nos vegetais devido às rigorosas normas de higiene. Não obstante, certos alimentos vegetais são enriquecidos com essa vitamina.
Todavia, isso não significa que ser vegetariano é sinónimo de tomar suplementos para permanecer saudável:

• Os animais explorados para consumo costumam carecer de vários nutrientes, incluindo B12, pelo que recebem suplementos. Por essa lógica, mais vale tomarmos nós o suplemento do que dá-lo ao animal para depois o matar;
• De acordo com o site Vitamina B12 e Saúde, do nutricionista Dr. Schweikart, a suplementação é recomendada independentemente do tipo de dieta;
• Em The 80/10/10 Diet, o  Dr. Douglas N. Graham explica que a falta de glicoproteína dificulta a absorção de B12 e que isso acontece quando se consome gorduras em excesso. Produtos de origem animal são muito mais ricos em gorduras do que os de origem vegetal. As bactérias que temos no intestino e que produzem a B12, segundo o mesmo, necessitam de hidratos de carbono como combustível: portanto, é essencial uma boa dose de hidratos de carbono na nossa alimentação bem como cortar nas gorduras.


Se não precisamos de comer animais e os seus insumos (e isso está mais do que comprovado em vários níveis), o que nos entrava é puramente o hábito, o conformismo e a apatia. E todos esses aspectos não se correlacionam com a noção de amá-los e, muito menos, de respeitá-los.

Por último, é importante frisar que o veganismo não se trata de uma questão de amor aos animais, de virtude ou de doxa. Trata-se de salvaguardar os direitos naturais e fundamentais que os animais possuem e que nós estamos sempre a retirar-lhes. Trata-se do direito que todos os animais têm em não ser explorados, apropriados, rotulados, vendidos e comoditizados, independentemente de nos causarem empatia ou não até porque não é a nossa falta de empatia por eles que vai torná-los invulneráveis. Trata-se de colocar a vida deles acima das nossas conveniências.

Trata-se de uma questão de justiça.

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Imagem: Diário de Notícias
Vídeo 1: The Secret Reason We Eat Meat, Melanie Joy
Vídeo 2: Piglets Vs The Public, Joey Carbstrong
Vídeo 3: B12, a Vitamina Anti-Vegan, Luís Miguel