24/01/2022

“Comer carne é uma escolha pessoal”


Comer carne será mesmo uma escolha pessoal, tendo em conta que envolve vítimas? E, apesar de serem vítimas não-humanas, não será a capacidade senciente delas suficiente para questionar se é mesmo uma escolha pessoal? E precisaremos mesmo de gostar dos animais para os respeitarmos e, com isso, compreendermos as consequências brutais dessas mesmas escolhas?
Estas e outras colocações especistas continuam bem actuais  mesmo com toda a informação científica, moral e social relativa aos animais , prova sólida da força dos nossos hábitos e como estes continuam a despersonificar e a comoditizar criaturas tão susceptíveis às emoções quanto nós.
Aqui apresento resposta contra essas e outras, mas ao fim de quase 8 anos de veganismo aprendi uma coisa: toda esta batalha argumentativa e contra-argumentativa, entre a desobediência ética e o carnismo acomodado, só opera substancial mudança quando deixamos de ver a justiça como antropocêntrica e a colocamos ao serviço de todos os que sofrem. Em suma, quando colocamos o respeito acima do nosso estômago. E, por isso, aos que comem animais e que estas linhas leiam, convido-os a colocar numa balança e concluir o que tem mais peso: momentos supérfluos de gula ou não fazer mal a ninguém, mesmo que tenha pêlo, plumas ou escamas no lugar de pele desnuda? O que será verdadeiramente difícil: não comer animal ou ser o animal, violentado desde a nascença, nascido para morrer?

Um aparte: algumas das inferências foram retiradas de um único comentário deixado por um indivíduo numa rede social (mais concretamente num grupo pelos direitos dos animais, o que é lamentavelmente irónico).

Comer carne é uma questão cultural.

A cultura não é uma resposta sólida quando a acção praticada envolve uma vítima. Todos nós sabemos que ainda existem determinadas barbaridades que são classificadas como tradições e que precisam de ser erradicadas definitivamente. Fazer mal a alguém, seja a um animal humano ou não-humano, em nome de uma cultura, é injustificável.

Comer carne é uma escolha pessoal. 

Quando uma escolha pessoal envolve uma vítima, não é mais uma escolha pessoal. As nossas escolhas não devem envolver terceiros e muito menos implicar o sofrimento dos mesmos. Colocar vontades e interesses à frente de uma vida é incorrecto, ainda para mais quando essas vontades e interesses podem ser saciados com alternativas sem crueldade.

Eu não gosto de animais, portanto não quero saber deles para nada.

Não gostar de animais não nos dá liberdade para lhes fazer mal. O mesmo se aplica aos outros tipos de discriminação. Ninguém é obrigado a gostar de animais, mas sem dúvida que é obrigado a respeitá-los até porque o dever moral está totalmente desapegado dos nossos juízos de valor. Em suma, não temos o direito de praticar atitudes abusivas contra os outros porque não gostamos deles, ou porque não os toleramos, ou porque temos a mania da superioridade. A integridade de um indivíduo está acima das considerações negativas que temos sobre ele.

Dentes caninos fazem de nós carnívoros.

Centrar toda a nossa alimentação na existência dos caninos é bastante redutor. Os caninos são dentes que servem para segurar e rasgar alimentos alimentos esses que não têm de ser necessariamente carne. Para além disso, cozinhamos e cortamos a comida com utensílios próprios antes de a mastigarmos, o que leva à utilização maior dos molares do que dos caninos.
Existem vários animais que possuem caninos gigantescos (e que deixam os nossos pequenos dentinhos num canto) e que são estritamente herbívoros, como o gorila. Facilmente conclui-se, portanto, que a dentição das espécies não determina os seus requisitos alimentares.

As plantas também sofrem.

Para além da senciência vegetal ser uma teoria constantemente refutada, um indivíduo com uma alimentação omnívora mata mais plantas do que um indivíduo com uma alimentação vegetariana estrita, tendo em conta que são necessários 7 a 16 quilos de plantas para a produção de um único quilo de carne. E vamos ser realistas: ninguém compara os restantes animais  os que não comemos  com couves. Esta afirmação é só uma tentativa de reduzir ao absurdo uma realidade hedionda.

Os veganos têm de tomar suplementos que são caros e comprovam que a alimentação que fazem não é natural.

Mulheres grávidas tomam suplementos. Atletas e desportistas tomam suplementos. É recomendado que bebés, crianças pequenas e idosos tomem suplementos. Há pessoas que comem animais e tomam suplementos. A suplementação não reflecte, nem um pouco, se a nossa alimentação é natural ou não.

Temos de ser realistas: quase nada do que fazemos é natural. Ainda assim, relativamente à alimentação, parece-me ser um pouco mais natural retirar um tubérculo da terra ou colher uma fruta da árvore do que inseminar artificialmente um animal, fazer mudanças genéticas para melhorar a qualidade da carne dos animais e tratá-los com antibióticos e hormonas para que cresçam e engordem mais depressa. Podemos rebater e dizer que os vegetais também são tratados com pesticidas, mas os animais usados para consumo também se alimentam desses vegetais contaminados quimicamente.

Afirmar que os veganos têm de tomar suplementos, como se fosse algo incontornável, é falso. Todos os nutrientes necessários estão presentes numa alimentação totalmente vegetal com excepção da B12. Há veganos que optam por adquiri-la através de um suplemento (e não de vários, como o comentário parece sugerir) e outros preferem consumir produtos que foram enriquecidos. Pessoalmente, também acho mais natural tomar um suplemento ocasional do que tomar imensos medicamentos para doenças causadas por uma má alimentação. Penso que o suplemento acabe por tornar-se mais barato do que as contas exorbitantes dos tratamentos clínicos e remédios.
Ainda sobre a B12, o nutricionista George Guimarães escreveu o seguinte sobre a vitamina e explicou porque não considera a sua suplementação como anti-natural:

A vitamina B12 é produzida por bactérias. Com um estilo de vida moderno, o nosso consumo dessas bactérias foi drasticamente reduzido, o que é óptimo, pois com isso, deixamos de consumir também as bactérias que podem causar doenças. Já os animais não-humanos continuam a consumir água e alimentos não-esterilizados, ciscam o chão, lambem o corpo, etc., o que lhes garante a ingestão das bactérias produtoras da vitamina. Logo, não é a dieta vegetariana que não é natural à espécie humana, mas sim a espécie humana que vive num ambiente que não lhe é natural.

O facto da suplementação da vitamina B12 ser necessária numa dieta vegetariana não significa que a dieta vegetariana não seja natural à nossa espécie. Significa apenas que a nossa espécie está demasiadamente distante do ambiente natural no qual evoluímos, onde a vitamina B12 era suprida pelo consumo frequente de bactérias presentes na água e nos alimentos. Por esse motivo, para contrapormos um problema causado pela modernidade, uma solução igualmente moderna é necessária e essa solução é a suplementação da vitamina.

Não obstante, esse ambiente natural que ele refere também não está nem um pouco presente na criação do gado explorado para o nosso consumo. Devido à pobreza nutricional dos alimentos que lhes são dados têm de receber suplementos, inclusive a B12.

Somente quem é capaz de reivindicar direitos é que pode ter direitos.

Bebés, crianças pequenas e indivíduos com alguma condição que limite as suas capacidades como seres conscientes não conseguem reivindicar direitos e todos nós sabemos que todos eles têm direitos.

Mas uma deficiência é uma doença que impede a efectividade dessa reivindicação, pelo que um indivíduo nessas condições continua a merecer direitos, contrariamente aos animais.

Também sabemos que uma pessoa com essas características continua a ter direitos porque possui uma consciência de si ou um sentimento de si, mesmo que não esteja capaz de manifestar-se pelos seus direitos e mesmo que não possua mais princípios éticos/morais. A consciência de si, ou sentimento de si, não se resume a um auto-reconhecimento, seja biográfico ou puramente da própria imagem. Também não se resume à competência linguística, à memória, à imagem unificada do corpo ou ao raciocínio inferencial. É esse sentimento de si, que leva alguém a ter emoções/senciência, mesmo que não as consiga expressar, que deve ser considerado suficiente para afirmar que um determinado indivíduo tem direitos  e isso inclui os animais não-humanos.

O veganismo é uma ideia utópica.

O fim de muitos tipos de exploração animal também pareceram utópicos há alguns anos, mas a informação e sensibilização mudaram ou estão a mudar essa situação. Actualmente, o impacto do veganismo é visível e começa a ser quase impossível ignorá-lo. Alguns exemplos:

Cada vez mais pessoas estão a diminuir, senão mesmo a abandonar, o consumo de carne;
Algumas empresas de lacticínios abandonaram o produto original para se dedicarem à produção de leite, iogurtes e queijos vegetais;
A cosmética cruelty-free está a aumentar;
Em Portugal, o número de vegetarianos quadruplicou em 10 anos;
Menos 400 milhões de animais foram mortos em 2014 em comparação com 2007 devido à diminuição do consumo de carne;
Cada vez mais países e cidades estão a abolir a criação, exportação e venda de peles de animais;
Cada vez mais países e cidades estão, também, a proibir ou a restringir o uso de animais em circos.

Tudo isto, entre outras pequenas vitórias pelos animais, estão a suceder cada vez mais graças a todo um movimento activista e de conscientização social. Esta contra-corrente, que desobedece à visão antropocêntrica tradicional, é reveladora de que o veganismo é plenamente praticável, distanciando-se assim do conceito popular de utopia.

O que podemos fazer é criar pressão para que as condições de abate dos animais sejam as mais dignas possível.

Enquanto exigimos o encerramento permanente da indústria de carne de cão, pedimos que a indústria dos animais que comemos seja somente reformada. Isso denuncia completamente a nossa posição bem-estarista e de compaixão selectiva, em que a vida de uns é, para nós, mais valiosa do que a de outros, só porque sentimos mais ou menos empatia dependendo do tipo de animal. Tal não devia ser um factor de peso para definirmos qual a é a indústria mais certa ou mais errada, visto ambas fazerem exactamente a mesma coisa.

Também não nos devemos esquecer que os animais sofrem muito antes do abate: há inúmeras etapas que envolvem dor e crueldade, como o corte de cornos, caudas, asas e bicos, arranque de dentes, separação forçada, exportação de animais vivos, pouco ou nenhum espaço para os animais se movimentarem, privação de sono, entre outras. Estas etapas obedecem um padrão e muitas delas visam o aumento da margem de lucro por parte das indústrias, pelo que é irrealista acreditar que deixarão de acontecer.

De acordo com a definição global, o abate humanitário envolve um conjunto de etapas que garante o bem-estar dos animais que serão abatidos. No entanto, estes termos — “humanitário” e “bem-estar” — são comummente aplicados quando nos referimos a casos em que procuramos fazer exclusivamente o bem a um indivíduo e não em situações em que temos, como finalidade, matá-lo de alguma maneira. Quando nos referimos ao bem-estar das crianças e dos idosos, por exemplo, não estamos a pensar em mais nada além de proporcionar benefícios para essas pessoas. O mesmo serve para a ajuda humanitária. Então, porque essas definições perdem todo o seu sentido quando o assunto são os animais?

Abate humanitário é um oxímoro criado para nos sentirmos menos culpados com a morte de biliões de animais. Além disso, o padrão distancia-se totalmente desse tipo de abate, sendo que muitas indústrias afirmam cumprir as regras de bem-estar, enquanto na prática a situação é completamente diferente.