16/02/2023

Os animais na mitologia grega



Breve nota: Este texto é uma interpretação da cultura e da mitologia gregas a partir de leituras e de estudos feitos, tendo, portanto, um cunho pessoal.

O perambular do tempo despertou milhares de sensações que os seres humanos desconheciam. Essas sensações tanto maravilhava-os, como surpreendia-os ou aterrorizava-os abismalmente, ao mesmo tempo que as interrogações e as dúvidas em relação a determinados fenómenos exigiam respostas transformadas nas acções que comprometeram-se na construção da civilização humana e que, actualmente, oferecem alicerces para compreendermos o que somos hoje através do ontem. Desde o gradual entendimento do que é a morte, e de como este entendimento ramificou-se em rituais que actualmente continuam a suceder (como o sepultamento) e em crenças variadas (como a reencarnação e o contacto com os mortos através do xamã), à interpretação do universo onírico, à comunicação sem linguagem através da arte, entre outros aspectos, o ser humano descobriu-se ao reconhecer as suas capacidades mentais, intelectuais, físicas, emocionais e sociais e interligou-as para formar um casulo que desenvolveu-se até dar à luz as primeiras civilizações. O mito é uma das crianças que nasceu desse desenvolvimento racional e desse maravilhoso achado, permanecendo imorredouramente vital na nossa vida e na nossa cultura.

Pensar que é ridículo pegar em algo tão antigo como as narrativas mitológicas para tentar explicar as acções humanas actuais perante os animais não tem muita razão de ser: veja-se que a mitologia permanece bastante actual e que continua a inspirar os nossos corações ribombantes. Literatura, dança, música, cinema, teatro, pintura, escultura, entre outras formas artísticas, continuam a alimentar-se deste poderoso néctar que foi deixado pelos povos passados. Os livros homéricos são uma das obras que mais influenciaram a Humanidade, bem como a Eneida de Virgílio e Os Upanishads (que, apesar de serem escrituras amplamente filosóficas, também convidam o leitor a conhecer os mitos da criação hindus). Definir o mito como o coração de uma cultura é, portanto, despojado de hipérbole.

Podia desenvolver as mais variadas questões que circundam a importância mitológica, desde a influência que a visão ingénua da cosmogonia teve para o desenvolvimento de determinadas cogitações filosóficas de vários pré-socráticos (como o bem conhecido Tales de Mileto), à mensagem que os mitos transmitem acerca das virtudes e dos vícios, como esta narrativa é fundamental para compreender as idiossincrasias de um determinado povo, para a explicação de diversos rituais, entre outras considerações mais. No entanto, como este espaço é dedicado exclusivamente à ética e libertação animal, cingir-nos-emos, precisamente, a essa questão – e para tal, devemos desfiar os mitos do ponto de vista moral. Escrutinar várias histórias mitológicas e interpretá-las é exequível. No entanto, vou procurar compactar várias narrativas mitológicas num único artigo para não ficar tão exaustivo.

Como referi acima, a Ilíada e a Odisseia, de Homero, são algumas das obras mais lidas a nível global. Durante séculos estes dois poemas foram a base da educação grega. Tanto um poema como o outro espelham imediatamente a vida social e moral do povo grego vida essa que foi bebida pelos romanos e, consequentemente, repartiu-se aqui e ali pela Europa, ora subtilmente naquele país, ora mais concretamente noutro , situando-se na Idade dos Heróis hesiódica (que era melhor do que a Idade do Bronze, que por seu turno era menos virtuosa e mais conflituosa).
Quem se interessar por estes textos antigos facilmente notará, até mesmo se fizer uma leitura na diagonal, que Homero transmite eficazmente o privilégio do ser humano (somente do sexo masculino) que respirava-se nessa época. Para além de não ser um caso isolado, consegue reflectir, grosso modo, alguns comportamentos e visões que o ser humano continua a ter e a praticar actualmente – e os animais não-humanos sofrem bastante com esses comportamentos e visões.

Numa sociedade cuja base estendia-se perante um sistema patriarcal e especista, não são surpreendentes as linhas negativas e pejorativas que podemos encontrar nas obras homéricas – e não é preciso pensar muito para notar que esse sistema permanece bem enraizado no nosso século. Falando somente dos animais (embora alguns destes tópicos também incluam as mulheres): sacrifícios sangrentos, objectificação, atribuição de vícios e defeitos humanos aos animais, ligação do caos da Humanidade com uma figura que contenha atributos de um animal não-humano, entre outros.


Preparação do sacrifício de um cordeiro para as três Graças. Pintura sobre madeira. | Corinto, 530.520 a.C. Museu Arqueológico Nacional de Atenas.


A inferioridade atribuída aos animais também era utilizada para simbolizar a miséria que assolava a condição humana. Nesta gravura podemos ver Argos Panoptes a guardar Io, tranformada numa vaca por Zeus. Conta o mito que o grande deus, relampejante de paixão pela mortal, cobriu o céu de escuras nuvens para esconder a sua sedução de Hera, sua esposa. Saindo gorada a tentativa, a deusa desceu do Olimpo e exigiu que o gigante de cem olhos vigiasse a vaca. A pedido de Zeus, Hermes adormeceu Argos e matou-o, cortando-lhe a cabeça. Posteriormente, Hera homenageou-o colocando os seus olhos na cauda do pavão.
Quanto a Io, foi forçada a correr mundo para fugir à fúria de Hera, que enviou um moscardo para picá-la sem cessar. | Vaso de cerâmica, 470-460 a.C. Museu de Belas Artes, Boston, Massachusetts.

Nos textos homéricos está bem patente essa relação desarmoniosa do ser humano com o animal: o primeiro sobrepõe-se constantemente ao segundo, ceifando-lhe a vida quando a oportunidade assim se revela favorável; em rituais, então, os animais não são nada poupados. Actualmente também não o são: a diferença, para além dos séculos, dos deuses e das crenças, é que não chamamos mais isso de ritual pagão mas sim de data religiosa comemorativa, como Páscoa e Natal – e, quer queiramos ou não, essa necessidade de sacrificar animais para celebrar qualquer coisa permanece presente. Assim como chamamos estas celebrações de tradições, os gregos antigos também designavam dessa forma os seus ritos – portanto, não é propriamente correcto tentarmos desligar-nos do que era realizado nos séculos a.C. quando as tradições que hoje defendemos baseiam-se nos mesmos contornos. Matar animais tornou-se parte da nossa cultura e da nossa forma de viver e assim continua.

Para não dar a entender que comer animais era um acto puramente religioso (só comecei por esse tema para mostrar a conexão entre os costumes passados e os costumes presentes), vou transcrever alguns excertos da Odisseia que descrevem o uso quotidiano dos animais na alimentação humana:

Depois sentou-se a ordenhar as ovelhas e as cabras balidoras,
uma de cada vez; debaixo de cada uma pôs a cria dela.
A seguir coalhou metade do alvo leite, recolhendo-o
em cestos entretecidos; depois pô-lo de parte.
[Odisseia, Canto IX, 244]

Esta parte que Ulisses conta aos Feaces retrata uma prática corriqueira que, hoje, encontra-se bastante mais desenvolvida e industrializada: se antes os pastores precisavam de iludir a mãe (fosse ela vaca, cabra, ovelha) colocando a cria debaixo dela, levando-a a libertar o leite, agora essas mães são criadas em números astronómicos por inseminação artificial e drogadas com substâncias que induzem a produção contínua de leite. E para quem pensa que, antigamente, mães e filhos podiam pastar juntos, numa ode hipócrita do bem-estarismo, veja-se o que Ulisses explicou antes:

(...) os currais estavam apinhados de cordeiros e cabritos, todos separados,
cada um em seu sítio: os que tinham nascido primeiro;
os que vieram depois; e os recém-nascidos.
[Odisseia, Canto IX, 217]

É fácil perceber que herdámos estas práticas de exploração dos nossos antepassados e que, com o aperfeiçoamento das tecnologias, estendemos essas práticas para uma criação bem mais intensiva, cujas vítimas permanecem as mesmas. Até os métodos agrícolas que Hesíodo partilha nos seus Trabalhos e Dias foram usados ao longo do tempo até serem substituídos pela poderosa máquina –quase de certeza que os nossos avós conhecem ou trabalharam com o arado antigo e, muito provavelmente, o devido ainda é utilizado em zonas rurais mais humildes.
Para além disso, Hesíodo oferece um calendário rigoroso de tarefas ao longo do ano que pode ser aplicado aos nossos dias, dependendo do clima: lavra e sementeiras em Novembro, lavra de recurso em Dezembro, poda da vinha em Fevereiro, colheitas em Maio, debulha em Junho, vindima em Setembro. Toda esta organização do labor agrícola permanece bem actual.
Mas desengane-se quem achar que Hesíodo ajudou a transmitir, para as gerações futuras, somente estes conselhos: ele também escreveu sobre capar os animais, utilizar a pele para vestuário, alimentar pouco o cão para que este fique mais agressivo e ataque possíveis meliantes – e por aí vai. Apesar das longas barbas do tempo ter-nos dado a chance de abraçar um século eticamente mais sensível, ainda assim continuamos com o coração bastante obsoleto e encaramos tais práticas como normais; já ser contra elas é um acto de rebeldia e extremismo.

Outro pormenor que me chamou a atenção e pode ser encontrado na obra Os Gregos do professor H. D. F. Kitto foi a visão que os gregos tinham do consumo de carne: é tão, mas tão presente nos nossos dias que chega a parecer que estamos a ler algo sobre a nossa sociedade actual.

Em Homero, os heróis comem um boi de duzentos ou trezentos em trezentos versos, e comer peixe é sinal de extrema penúria.
[KITTO, Os Gregos, página 59]

Comer animais, principalmente mamíferos, era sinal de ostentação e de extrema riqueza: ao longo do tempo assim ficou e, ainda hoje, nalgumas regiões, tal pensamento continua enraizado.
Comer animais mostra estatuto. Uma vista rápida pela alta gastronomia corrobora com essa afirmação: dificilmente ver-se-ão pratos estritamente vegetarianos.

Todavia, Kitto não fica por aqui e frisa que esses gregos dos tempos homéricos em quase nada se pareciam com os gregos clássicos, em que a carne era basicamente desconhecida para eles – e, ainda assim, tinham energia para dar e vender, bem como a esperança média de vida deles era espantosamente boa para a época. Kitto até brinca um pouco com isso, referindo que o rei Agesilau de Esparta ainda combatia com oitenta anos (e, por curiosidade, os guerreiros espartanos eram estritamente vegetarianos). Mas deixando os casos específicos (porque não desejo, de todo, passar do particular para o geral), a verdade é que a alimentação dos gregos clássicos era frugal, factor esse que continua a ser apontado, juntamente com a vida ao ar livre, como a base que transformou os gregos em homens vigorosos. Somente a coisa esbarrava com o consumo de peixe e com as festas que implicavam o consumo de carne – e não serão os eventos mais tradicionais, ainda, um entrave para a aceitação pacífica do vegetarianismo?

Deixemos o modo de vida e alimentação dos antigos gregos e regressemos, novamente, às suas narrativas fantásticas. Quem adora mitos e já leu vários que envolvem animais, provavelmente reparou que o fio da vida envolve-os comummente, sendo esse fio inevitavelmente cortado por Átropos. Este aspecto revela outra característica típica dos mitos: o uso de animais ou híbridos para absolver o homem que errou, através do sacrifício. O mais simples acto de matar um animal para amainar a ira de algum deus é um exemplo disso. O ser humano é hegemónico em relação à Natureza e aos animais, podendo utilizá-los à sua revelia para conseguir salvar-se. A sua superioridade em relação aos animais também pode ser encontrada nas centenas de mortes presentes nos mais variados mitos. Eis estes parcos exemplos:

• Hera enviou um enorme Caranguejo para resgatar a Hidra, que acabou sendo esmagado por Héracles. Movida pela compaixão, Hera colocou o Caranguejo no Céu e este passou a ser uma constelação;
• O Leão da Nemeia foi estrangulado por Héracles no primeiro dos seus doze trabalhos;
• Héracles também matou Ethon, a águia enviada por Zeus para alimentar-se diariamente do fígado do titã agrilhoado Prometeu;
• Na Odisseia, os companheiros de Ulisses mataram as vacas do Sol. Obviamente que foram castigados porque cometeram um sacrilégio contra Hiperíon, mas tal não restituiu a vida dos animais que pastoreavam pacificamente na ilha.


Herácles combate
o Leão da Nemeia. Filho de
Ostros e de Equidna, era o maior leão do mundo, cuja vulnerabilidade única era a sua própria garra, capaz de rasgar a sua pele. O filho de Zeus e Alcmena, após estrangulá-lo, arrancou-lhe a garra e rasgou-lhe o couro, que acabou por utilizar como capa. Esta luta simboliza a hegemonia do ser humano perante o animal, listando a força, astúcia e estratégia como características que separam o primeiro do segundo e que, por isso, justifica o domínio de um perante o outro. Histórias similares a esta, que envolvem lutas entre seres humanos ou semideuses contra animais ou criaturas híbridas são incontáveis e fortalecem esta visão especista e antropocêntrica. | Gravura em cílix, 510-500 a.C. Museu do Louvre, Paris, França.

Os híbridos também não costumam ter muita sorte:

 Teseu expulsou os centauros da Tessália e Héracles exterminou-os quase todos;
• Quíron, o centauro imortal, abdicou da sua vida eterna para que Zeus libertasse Prometeu do seu castigo. O Pai dos deuses ficou tão surpreendido com a bondade extrema do centauro que decidiu homenageá-lo, transformando-o na constelação que conhecemos como Sagitário;
 A Quimera, fera mágica que deitava fogo pelas narinas, foi morta por Belerofonte. O herói mortal também foi o único que conseguiu domar o cavalo alado Pégaso, simbolizando deste modo a relação submissa do animal para com o ser humano;
 Equidna, metade mulher e metade serpente, apesar de ser imortal segundo Hesíodo, na versão de Pseudo-Apolodoro acabou por ser morta por Argos Panoptes, o guardião de cem olhos.


Os animais só têm o seu momento de glória quando, no mito, existe um humano tão execrável e vergonhoso que não merece outro final, senão ser morto por um elemento considerado inferior a ele. Outra forma que o mito recorre para castigar ou prejudicar um ser humano é, precisamente, transformá-lo num animal:

 Circe transformava os homens em animais: na Odisseia, os companheiros de Ulisses são metamorfoseados em porcos;
 Actéon foi transformado em veado pela deusa Ártemis depois de vê-la desnuda. O neto de Cadmo acabou por ser despedaçado pelos seus próprios cães de caça.


Um mito que revela, de forma nua e crua, a superioridade auto-proclamada pelo ser humano — e como este não tem mesmo piedade para com as outras criaturas — é o do Minotauro.
Frequentemente ilustrado como um ser enormemente alto e extremamente encorpado, a sua natureza violenta ganha força pela hediondez física que apresenta no rosto: uma fisionomia mais virada para o animal não-humano, coberta por grossos pêlos escuros e ornamentada com dois grandes chifres que exigem respeito. Vários artistas tomaram o Minotauro com características diferentes nas suas obras (mais humanizado, mais animalizado ou mais melancólico), mas a essência última que ficou é quase unânime: o simbolismo do monstro cretense roça a crueldade, a conspurcação espiritual, o animalesco, o irracionalismo grotesco e o caos – em suma, um rol de grandezas negativas que encaminham o ser humano para o erro, para a sombra e para o abismo.

A crueldade baseia-se nas práticas levadas a cabo pelo homem-animal que assassinava as vítimas, escolhidas para serem sacrificadas, a sangue frio. A ausência de arrependimento e de consciência interliga essa crueldade com o irracionalismo, aliados ao lado não-humano do Minotauro.

Mas porquê o lado não-humano? Porque não referir que este comportamento mórbido era o reflexo do lado humano do híbrido?

É minimamente estranho considerar o lado animal não-humano do Minotauro como o responsável pelos actos bárbaros que a personagem protagonizava: sendo uma mistura de um homem com um animal cujas características biológicas são antagónicas a estes comportamentos, é erróneo aliar as acções horrendas do Minotauro ao seu lado não-humano. O touro é um mamífero pertencente à ordem dos artiodáctilos (latim científico: Artiodactyla), constituído por animais maioritariamente herbívoros. Um bovino não ataca os seres humanos, a não ser por legítima defesa ou por estar a ser irritado; muito menos mata humanos para comê-los. Isto contradiz a ideia oferecida pelo mito: já o ser humano, vestido com uma aura de violência gratuita, não tem problema em matar seja quem for. O próprio consumo de cadáveres humanos é mais facilmente encontrado no historial da vivência humana do que na vivência do touro (até porque o último não caça, não come qualquer tipo de carne e não é sequer necrófago).
Deste modo, posso afirmar com toda a segurança que, contrariamente ao que ainda é maioritariamente interpretado, o Minotauro resolvia matar tresloucadamente devido à sua essência humana. Por mais que os animais não-humanos sejam despojados de uma racionalidade semelhante à humana e que tal pode justificar o comportamento cruel e irracional do Minotauro, a ordem biológica do animal presente no espírito do híbrido descarta essa hipótese. O ser humano consegue ser mais cruel do que o próprio animal não-humano por conseguir esquematizar e delinear as suas acções racionalmente, enquanto os animais fazem-no pelo instinto básico da sobrevivência e da defesa; portanto, mesmo que a essência animal presente no Minotauro pertencesse à classe carnívora, continuaria a ser uma acção menos criminosa do que a de um ser humano.


O mito deste híbrido é, provavelmente, o que mais espelha o espírito especista do ser humano: "contaminado" pela aura irracional dos animais, o Minotauro acaba por ser morto por Teseu. Veja-se que o monstro cretense utiliza rochas para atacar e defender-se, consideradas armas das criaturas ligadas à terra, como os Ciclopes e os Hecatônquiros.
Para perceber o final do mito é necessário mergulhar no poço histórico-cultural que está plantado nele. A relação entre atenienses e cretenses não era de todo a melhor: os primeiros odiavam os segundos e o sentimento era recíproco. Apesar de Creta e Atenas pertencerem ao plano geográfico grego, os atenienses negavam a nacionalidade dos cretenses, discriminando-os como estrangeiros: é sabido que os gregos antigos eram bastante etnocêntricos e consideravam bárbaros e diminuídos os indivíduos que não falassem grego ou que não fossem naturais da Grécia, pelo que esta segregação era insultuosa. A ausência de temas cretenses nas tragédias (com excepção de Eurípedes em Hipólito) e na poesia revelam igualmente o despeito dos atenienses pelos referidos: Píndaro, por exemplo, ignora Minos e os cretenses, enquanto Homero coloca o povo de Creta aliado aos troianos na Ilíada. Esta aversão suscitou a inclusão do herói grego Teseu no mito do Minotauro para afirmar a preeminência ateniense sobre os cretenses: o filho de Egeu, representante heróico de Atenas, mata o Minotauro cretense e liberta o povo da sentença tirânica de Minos: o Minotauro, como personagem representativa de Creta, é o inevitável vilão e a sua morte é obrigatória.
O touro era um animal sagrado para os cretenses: Europa, filha de Agenor e de Teléfassa, foi raptada por Zeus; este disfarçou-se de touro e levou-a para Creta, onde tiveram três filhos – Minos, Sarpedão e Radamanto. | Gravura em cílix, 510-500 a.C. Museu do Louvre, Paris, França.

Como escrevi num artigo, também ele dedicado ao Minotauro, os touros eram animais considerados sagrados em Creta e foi precisamente a bravura do animal que inspirou a imaginação humana para a história do monstro híbrido. Este exemplo, bem como outros tantos, revela que os gregos tinham uma percepção bastante ambivalente em relação aos animais: ora eram vistos como o símbolo da força, da inteligência ou da magnificência, ora eram avaliados como meros seres que existiam somente para servir o humano. Exemplificando, o leão era o animal, por excelência, presente na arte minóica e micénica: a sua beleza e ferocidade eram a união perfeita para simbolizar o régio. O Portal do Leão, em Micenas, é, provavelmente, a maior prova do valor desse animal para a cultura do povo grego. Porém, os homens não se ficavam pela contemplação e pela surpresa que o leão oferecia-lhes: matar o grande felino era uma prova de coragem pela parte do homem, deitando abaixo a aura de suposto respeito que o humano tem pelo reino animal.
A exploração dos animais para o sacrifício divino ou para banquetes (que já foi aqui constado) onde os homens podiam despir os bons valores e envolverem-se na lama dos prazeres supérfluos era um hábito frequente e que foi bastante criticado por vários filósofos que consideravam essencial a interligação pacífica com a Natureza. Pensadores socráticos, como Platão, também não aprovavam estes excessos que colocavam os animais num patamar inferior ao dos humanos, pela simples razão que os homens embriagavam-se no mundo dos sentidos e não preocupavam-se em alcançar a luz pura das ideias.
Veja-se que esta ambiguidade continua a ser exaustivamente praticada por nós: admiramos o voo das aves e, por isso, aprisionámo-las; pasma-nos a imponência dos grandes gatos e regozijamo-nos quando podemos aproximar-nos deles em ambientes que os deixam vulneráveis, como os circos e os zoos; adoramos tanto a candura das chinchilas, a elegância das raposas e o exotismo das serpentes que as matamos para retirar-lhes as peles; abraçamos as simpáticas ovelhas enquanto encomendamos a morte delas para rechear os nossos insatisfeitos estômagos.

Afinal, não somos tão diferentes dos povos antigos no modo de olhar para os outros; os nossos costumes também não se afastaram tanto assim, cujas semelhanças denunciam a ponte que as mais diversas civilizações construíram ao longo do tempo – e esse tempo, que de mãos dadas com a história humana permanece, deu-nos e continua a dar-nos a oportunidade de avaliar mais exaustivamente as nossas acções. O que diferencia-nos dos nossos antepassados é precisamente isso: situamo-nos num século mais sensível do ponto de vista moral e cientificamente mais aperfeiçoado que já comprovou, unanimemente, que os animais são seres sencientes e, por isso, ao termos conhecimento disso devemos reflectir melhor a nossa relação com eles e questionar se a nossa intervenção na vida deles é moralmente correcta. Valerá realmente a pena apelar para o argumentum ad antiquitatem para justificar os nossos actos mais egotistas quando temos pela frente uma metamorfose que oferece-nos a possibilidade de sermos melhores uns para os outros? Com isto não estou a defender que viremos costas ao passado, porque sem dúvida este é essencial para nos compreendermos – mas que olhemos para o ontem, tanto para as virtudes como para os erros, e que isso nos inspire a sermos humanos mais justos.


Recursos utilizados:

HOMERO, Odisseia. Cotovia, 8.ª edição: Julho de 2010.
HESÍODO, Trabalhos e Dias. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2ª edição: Novembro de 2014.

FUTRE PINHEIRO, MARÍLIA P., Mitos e Lendas da Grécia Antiga. Clássica Editora, 2011.
HAMILTON, EDITH, A Mitologia, Publicações Dom Quixote.
KITTO, H. D. F., Os Gregos. Arménio Amado - Editora - Coimbra, 3ª edição.
ROSE, H. J., Mitología Griega, Biblioteca Universitaria Labor.
ENCICLOPÉDIA VERBO LUSO-BRASILEIRA DA CULTURA, Edição Século XXI.