26/02/2019

Machado de Assis: “Não sou homem de touradas; e se é preciso dizer tudo, detesto-as”


Mesmo quem nunca leu nada de Machado de Assis quase de certeza que já ouviu falar deste escritor, considerado por muitos críticos como o maior nome da literatura brasileira. Introdutor do realismo no Brasil e dono de uma extensa obra, composta por mais de 800 materiais literários, a sua posição contra a crueldade animal é um tanto apagada e, consequentemente, pouco discutida.

No entanto, o autor que deu vida à inteligente Helena e à alegre Capitu deixou escritos que revelam a sua visão em relação aos direitos dos animais, chegando a admitir o asco que sentia pelas touradas. Foi no dia 15 de Março de 1877, através de uma crónica da revista carioca Ilustração Brasileira, que os leitores se depararam com a seguinte provocação irónica, comum do estilo machadiano:

O certo é que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei, porque não a vi. (...) Não sou homem de touradas; e se é preciso dizer tudo, detesto-as.

Um amigo costuma dizer-me:  Mas já as viste?  Nunca!  E julgas do que nunca viste? Respondo a este amigo, lógico, mas inadvertido, que eu não preciso ver a guerra para detestá-la, que nunca fui ao xilindró, e todavia não o estimo. Há coisas que se prejulgam, e as touradas estão nesse caso.

Numa época em que as touradas eram a última moda no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, Machado de Assis demonstrou ter plena consciência da barbaridade envolvida nas mesmas. Noutras crónicas, o escritor decidiu problematizar a desumana tradição:

E querem saber porque detesto as touradas? Pensam que é por causa do homem? Ixe! É por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da humanidade; (...).

É importante mencionar que esta citação sobre as sociedades protectoras dos animais é possivelmente referente ao movimento inglês, iniciado em 1824 com a fundação da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA). De facto, Machado de Assis pegava em acções internacionais para reflectir sobre a sociedade brasileira. Ao declarar-se sócio, sentimentalmente falando, de todas as sociedades protectoras dos animais, o escritor também chamava a atenção para o facto de que, no Brasil daquele período, mesmo que alguém quisesse tornar-se sócio efectivo seria impossível, precisamente porque não existia nenhuma entidade semelhante no país. Deste modo, também mostrava às pessoas a importância dessas sociedades dedicadas aos animais e aos seus direitos.

Sempre de forma irónica, observava: Não digo que façamos nesta Corte uma sociedade protetora de animais: seria perder tempo. Em primeiro lugar, porque as ações não dariam dividendo, e ações que não dão dividendo... Em segundo lugar, haveria logo contra a sociedade uma confederação de carroceiros e brigadores de galos. Em último lugar, era ridículo. Pobre iniciador! Interessar-se por um burro! Naturalmente são primos? Não; é uma maneira de chamar a atenção sobre si. Há de ver que quer ser vereador da Câmara: está-se fazendo conhecido. Um charlatão. Pobre iniciador!

Apesar de tardiamente, as organizações dos direitos dos animais chegaram ao Brasil. Foi em 1895 que surgiu a primeira instituição dedicada aos animais: a União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), com sede na cidade de São Paulo. A transformação urbana que se sentia na cidade paulista acabou por ser um motor fundamental para o aparecimento desta sociedade, mas um pouco por todo o país já se tinha noção da importância da luta pelos direitos dos animais. Precisamente no Rio de Janeiro, Machado de Assis foi exemplo disso. Numa crónica, publicada em 1889, no jornal Gazeta de Notícias, o escritor simulou a narração de um diálogo entre ele e uma personagem não identificada. Nessa conversa, Assis comenta o carácter ainda precário das iniciativas brasileiras pelos animais, bem como as condições hediondas em que vivem os burros, explorados para puxar carroças e eléctricos, e dos cães abandonados.

Quase 35 anos depois da morte do renomado escritor, a primeira instituição pelos animais do Rio de Janeiro foi fundada. Em 27 de Abril de 1943, a Sociedade União Internacional Protetora dos Animais (SUIPA) oficializou as suas actividades. Nomes sonantes da cultura brasileira a ela associaram-se, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, a romancista Rachel de Queiroz e a psiquiatra Nise da Silveira.

Machado de Assis talvez tenha sido o primeiro grande escritor brasileiro a preocupar-se com os animais. Em vários momentos, ora subtis, ora mais evidentes, espelhou na sua obra essa preocupação. Em Dom Casmurro, por exemplo, há uma passagem que mostra a maldade humana a ser derrotada pela empatia com um único gesto de um animal não-humano: (...) Três cães na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só sabe agora disto. Então resolvi matá-los; comprei veneno, mandei fazer três bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saí; era uma hora: nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando eles me viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da praia do Flamengo, um ficou a curta distância, como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos sinais de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como se eu continuasse, ele veio a mim, devagar, mexendo a cauda. que é o seu modo de rir deles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso.
Ao leitor pode parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao silêncio. Não digo que não; eu cuido que ele não me quis atribuir perfídia ao gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se livrou.


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